Precisamos falar sobre o gaslighting antissemita
- Matheus Alexandre
- 19 de abr.
- 3 min de leitura

Gaslighting é uma palavra em língua inglesa que faz referência a forma de manipulação psicológica em que uma pessoa ou grupo faz com que alguém duvide da própria memória, percepção ou sanidade. O termo vem do filme Gaslight (1944), no qual um marido manipula pequenos elementos do ambiente (como a intensidade da luz a gás) e nega que tenha feito isso, fazendo com que sua esposa comece a duvidar da própria sanidade.
O gaslighting antissemita ocorre quando, ao se apontar uma atitude, ação ou linguagem antissemita, os responsáveis por essa manifestação reagem negando que se trate de antissemitismo, acusando quem denuncia de exagero, má-fé ou sensibilidade excessiva — em vez de refletirem sobre o conteúdo da crítica.
O professor David Hirsh, autor do livro Contemporary Left Antisemitism (2017), aborda esse fenômeno ao desenvolver o conceito da “Formulação Livingstone”. Segundo ele, trata-se de um mecanismo de reversão da acusação, no qual a denúncia de antissemitismo passa a ser considerada mais ofensiva e problemática do que o próprio ato antissemita.
Em vez de refletirem sobre a crítica recebida, os acusados reagem acusando os denunciantes de agirem com uma suposta “má fé sionista” para tentar silenciar críticas a Israel — enquanto a manifestação antissemita original é minimizada, ignorada ou até mesmo justificada.
Ou seja, antes mesmo de refletir sobre a atitude antissemita que está sendo apontada, cria-se um mecanismo de silenciamento contra quem a denuncia — geralmente a comunidade judaica — sob a acusação de que haveria uma intenção oculta por trás da crítica: a de silenciar vozes legítimas que se opõem a Israel. Dessa forma, desvia-se o foco do conteúdo antissemita e inverte-se a lógica da denúncia, deslegitimando quem a faz.
Pois bem. Esse gaslighting contra a comunidade judaica tem se intensificado no Brasil desde o dia 7 de outubro, especialmente em espaços que se identificam como “de esquerda”. O episódio mais recente envolve a entrevista concedida pela professora Arlene Clemesha — autora do livro Marxismo e Judaísmo: a história de uma relação difícil — ao podcast da Folha de São Paulo. Na conversa, a professora afirmou que “o judaísmo vive uma crise de consciência com o genocídio em Gaza”.
É, no mínimo, surpreendente ouvir esse tipo de declaração vinda justamente de setores que costumam repetir que “antissionismo é ser contra Israel, não contra os judeus”. Ao afirmar que o judaísmo, enquanto tradição milenar e plural, estaria atravessando uma crise por causa das ações de um governo específico, sustenta-se exatamente o oposto do que se diz defender. A afirmação pressupõe que o judaísmo seria uma cultura monolítica e inseparável do Estado de Israel — o que, na prática, naturaliza uma lógica de responsabilização coletiva dos judeus ao redor do mundo pelas ações do governo israelense, inclusive daqueles que o criticam abertamente.
“Dois judeus, três opiniões.”
Essa antiga máxima judaica é frequentemente evocada para ilustrar a pluralidade de pensamentos dentro do povo judeu — e, quando se trata de Israel e de seu governo (especialmente o atual), não poderia ser diferente. Assim como não é correto afirmar que a totalidade da sociedade israelense é responsável pela guerra em Gaza, tampouco se pode imputar responsabilidade aos judeus da diáspora — cidadãos de outros países, com preocupações e dilemas próprios. A maioria dos judeus no mundo tem tanto poder de influência sobre o que ocorre em Gaza quanto qualquer não judeu. Ainda assim, não se exige “exame de consciência” de outras comunidades, mesmo diante de conflitos ou crimes graves envolvendo Estados nacionais. Essa assimetria é reveladora de um padrão antissemita recorrente, que insiste em enxergar o judeu como alguém eternamente leal a um poder estrangeiro.
Diante disso, a fala da professora Arlene Clemesha é, sim, equivocada – para dizer o mínimo. E, como qualquer grupo minorizado diante de uma generalização que o desumaniza, parte da comunidade judaica reagiu — com razão — cobrando responsabilidade tanto da autora quanto do jornal que a entrevistou.
A resposta de setores da extrema-esquerda, do PCB ao PSOL, seguiu o roteiro de sempre: afirmaram tratar-se de um “ataque orquestrado pelos sionistas” com o objetivo de silenciar críticas ao Estado de Israel. A própria autora, ao endossar essa leitura sem qualquer gesto de autocrítica, reforça essa inversão.
Aqui vemos, mais uma vez, o gaslighting em ação: uma fala que ofende a comunidade judaica é classificada como “crítica legítima”, enquanto a reação dos ofendidos é retratada como um “ataque” coordenado para supostamente silenciar críticas contra o Estado de Israel.
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